segunda-feira, novembro 19, 2007

3

Estranho-te. A dispersão dos teus olhos. Esses olhos que testemunham a entrega. A nossa.
Hoje não bates à porta. O som da campainha já não te é familiar. Não és tu. Abres a porta com as chaves que eu te ofereci. No dia em que pela primeira vez foste tu quem vi ao acordar. O princípio do fim. Tu sabes.
Estranho os teus passos pelo soalho velho desta casa. Na distância que se quebrou com o contar do tempo. Perceberás tu que, por vezes, ao tentar que te afastes ainda te aproximo mais?
Vejo-te. E quanto mais te observo mais te quero perto. Na harmonia de que se fazem as horas, ás vezes. Guardo-te nas minhas mãos quando chegas. E aproximo-me. E fico. E nalgum instante permissivo estamos ambas aqui. Tu em mim. Eu sempre em ti.
Vens cansada das escadas, ofegante, cativante. E no beijo que solto sinto aquele cheiro, o cheiro da vida maltratada na tua pele. De novo, tu. E eu sou esta casa. A que te acolhe mais do que tu me acolhes a mim.
Vai. Quero que saias para que eu consiga preservar o que ainda é só meu. Absolutamente meu.

Chego perto. Subo as escadas e por cada degrau conseguido sinto um enjoo. Um acumular repentino de falta de ar. Paro de respirar quando poiso os pés no tapete da tua entrada. Ás vezes sinto que não consigo. Que não consigo superar esta barreira de madeira. Entro. Porque tu, tu do outro lado, puxas-me. Até aqui tudo me soa igual. É um hábito, sim. Em tão pouco tempo, os hábitos.
Entro e aí volto a respirar. E quando te vejo a meio caminho estremeço. Ainda estremeço perante ti. Todas as vezes acabam por ser a primeira vez. O início de tudo o que ainda não compreendo. Nos teus olhos algo. Algo de indefinição. Talvez medo. Talvez também sintas o sabor do hábito. A corrosão dos dias desta vida.
Hoje apetece-me beijar-te sem que tu me beijes. Querer-te e não sentir a reciprocidade. Não o percebes. Beijas-me e sei nesse instante que te sou. E que tu me és.
Queres que saia. Deste sonho ou pesadelo. Da incerteza que se mostra mais certa desta história.
Saio.

2 comentários:

Esfinge_Enfadonha disse...

Olá Narcisa,
Esse mergulho na própria alma e as imagens que essa viagem evoca são extremamente misteriosas e belas. Este teu texto, assim como os demais, causam em mim uma identificação instantânea.

Beijos da Esfinge

myself disse...

Belo texto.