quarta-feira, novembro 14, 2007

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Vejo-te a dormir, na perfeita frequência do silêncio. Quando de olhos fechados perturbas-me a quietude que desejo ter. Estás deitada numa cama com lençóis de cores indetermináveis, à tua volta os livros, as paredes brancas, uma janela ao fundo que te permite ver a arte da cidade. A escuridão parece mais vazia, mais negra, nas noites em que te quero mas não te consigo tocar. Dobras-te em imensidão nas várias posições que experimentas durante o teu sono. Estás à minha frente. Distante mas perto. Escrevo enquanto não estás. E quando estás e acordas e queres ver-me, eu não sou. Estou do lado de fora da porta. Do lado de fora de todos os espaços que conheces.



Sais. Nuns dias olhas para trás. Noutros esqueces-te dos lugares por onde os teus pés já passaram. Adquires novos conhecimentos à medida que tocas no chão. Limpo. Sujo. É o chão que te diz como te sentes hoje. O chão e a tua face ao espelho. A tua face como espelho da alma. Sais. Tens de ir. Não olhas para trás. Segues pessoas que estão à tua frente. Continuas o teu percurso. Para ti é sempre novo. Outro. Diferente do da véspera. Lembras-te do ontem? Ainda te recordas dos odores, da roupa, dos mapas incutidos nos teus olhos? Estou à tua frente. Conheces-me? Não. Segues em frente. Tocas ao de leve numa relva ainda molhada pelo resfriar do Inverno. Fechas os olhos. Vês-te deitada na relva. Gotas entranhadas na tua pele. Fechas os olhos e estás onde quiseres.


Durmo. Sei que durmo mesmo que sinta os teus olhos em mim. Nos contornos do meu corpo, deste corpo que tantas vezes deixo de sentir. Continuo a dormir e estás. Não te sinto a respirar. Podia acordar, hoje. E olhar-te também eu. Não te vejo, tu sabes. A minha cegueira não mo permite. Se me aproximasse, ficavas? Permitiras o tacto entre nós? Seguirias o meu andar pelas ruínas deste quarto. Acreditarias se te dissesse que em mim ainda existe luz. No fundo de uma gaveta. Num pedaço de tecido gasto. No mais profundo do que sou. Estou a falar. As palavras saem da minha boca. Ouve-me. Apenas hoje.

Entro na cidade pela porta da manhã. Os barulhos não me incomodam. As pessoas não existem. Sou eu no coração deste pulsar humano. Ando. Sigo-me pela calçada. Do lado direito. Do lado oposto dos sentimentos. Estou sã. Sei que estou. Os olhos estão demasiado abertos. Estão receptivos. Sou eu. Do lado de fora da avenida. Passeio pelo reflexo das lojas. Sigo-me. Não consigo seguir mais ninguém. Sigo-me a mim mesmo quando me esqueço de quem sou. E tu, sabes quem és?


Numa noite, numa em que te soubesse longe poderia pintar uma das tuas paredes.
Com o sangue das palavras.

Fechar-te os olhos para que saibas quem realmente eu sou.
Prender-te as mãos para que aprendas a me respirar.
Beijar-te o coração para que agora ele consiga reconhecer o que trago e o que lhe dou.






Aprender a saber como te receber. A permitir que entres neste espaço em que também o és. Vendar-te os olhos para que apenas sintas o melhor de mim.

1 comentário:

sílvia disse...

"Vendar-te os olhos para que apenas sintas o melhor de mim"

Mais importante do que ver será sempre o sentir *