sexta-feira, dezembro 07, 2007

Carta.

Querido Tio Zeca,



Hoje farias anos. E também hoje acordei com a tua morte. Lembrei-me que nunca te fui visitar ao cemitério. Que nunca mais falei de ti. Que nunca te escrevi. Nunca te escrevi. Foste a segunda pessoa a ir. Depois do meu avô foste tu. Estavas doente, o coração sempre o coração. As lágrimas caíram depois de ouvir o teu irmão, meu pai a começar a falar. A voz dele como nunca antes. Trémula. A dor a tapar-lhe as palavras. E tu morto. Na cama de um hospital. Mais uma vez a despedida que não aconteceu. Voltar a casa e não te ver a responder mal à tia. E esse vosso amor que sei eterno. Dos poucos que conheço. Porque o amor eterno só existe para alguns e esses serão sempre sortudos. Vocês foram.


O pai foi buscar-me ao aeroporto, não havia lágrimas nos seus olhos. Acho que nunca chorou. Abraçamo-nos e nada dissemos. Foi o melhor que se arranjou. Cheguei à tua casa onde estava a tia e os meus primos já adultos, nos seus trintas e muitos. A tia, a tua mulher, a quem gostavas de dizer “Há sempre dinheiro para ires ao cabeleireiro, ficas sempre mais bonita de cabelo liso.” E ela ia e continua a ir ao cabeleireiro – porque gosta de ficar bonita para ti. E a morte naquela casa. As lágrimas e o controle delas mesmas. Foste a perda. E contigo perdeu-se outras coisas. Perdeu-se o Natal. O natal que era passado na tua casa, já não se passa na tua casa. Acabou. Passei a ser eu e os pais. A família não existe. Porque tu morreste e já não há Natal. Nem Páscoa. Porque tu morreste. E contigo morreu aquilo que achávamos ser a família. E odiei-te por isso. Mas já não odeio. E hoje choro a tua morte. Porque sei que nunca te visitei no cemitério. Mas quando voltar a casa no natal vou visitar-te e vamos conversar e por momentos pode ser que esqueça que já não estás cá e que este ano mais uma vez não vai haver natal.

Tio e padrinho. Era algo que te orgulhavas. E foi contigo que comecei a ir à missa aos Domingos, desde muito cedo, todos os domingos íamos os três, a tia, tu e eu. Tu costumavas ler na Igreja e eras vaidoso por isso. E eu cantava muito, já sabia aquelas canções todas de cor. E depois no final os vossos conhecidos vinham ter com a tia e diziam “Ah canta tão bem, é neta, não é?” E a tia respondia que sim, que eu era a neta. Mas não era. Mas era como se fosse. Vocês os meus avós paternos, porque os verdadeiros não conheço. Morreram. Morreram quando eu ainda não tinha memória.
Depois da missa íamos almoçar, e comíamos sempre a mesma coisa: frango assado. Ontem apeteceu-me frango assado. Mas o melhor era mesmo aquele que comíamos os três, nos domingos da minha infância.

Depois eu fui crescendo e fui ficando rebelde e decidi que já chegava de missas e de cantigas. Depois o pai e a mãe construíram a casa de fim-de-semana e vocês iam sempre connosco. A tia cozinhava a sopa que vocês tanto gostavam e que eu detestava e a omeleta que só de pensar cresce água na boca. O pai dava-te muito nas orelhas, lembro-me tão bem e a tia não te defendia, fazia de propósito e eu lembro-me de rir e achar piada à vossa relação. A tia era mais velha do que tu e tu cuidavas dela com um amor infinito, de todas as vezes que ela ia para o hospital lá estavas tu incansável a falar com os médicos. Eras incansável, sim. E o que pudesses fazias. Por todos. Pelos teus amigos, pela tua família. A tia deu ao pai camisas tuas, novas, de marca. E eu fiquei com duas. Guardo-as comigo. Não me ficam nada bem, são monstruosas mas guardo-as. São minhas. E ainda tem o teu cheiro.

Lembro-me de quando estávamos no fim-de-semana de tu comeres arroz com leite quente, tinha de evitar olhar para ti porque senão ficava enjoada. E agora até disso tenho saudades.

E saudades quando dizias “a minha sobrinha”. E eu ainda guardo comigo o orgulho de ser a tua sobrinha.



Até breve Tio.


Um abraço e um sorriso

C.

1 comentário:

Maria dos Açores® disse...

A morte faz parte da vida. Deve ser a única certeza que temos desde o primeiro momento de vida... mas custa tanto perder quem amamos... as saudades são tantas que por vezes parece que também morreremos...